Marta sentia que a cidade era dividida. Geográfica, cultural e socialmente. Esse sentimento ora aflorava com ímpeto, ora era apenas subentendido por ela. Não que ela ficasse segregada a um lado só da cidade. Não! A escola, o clube, a biblioteca, entre outros recintos e departamentos, embora ficassem à direita da vala que separava o tráfego urbano, da estrada estadual, era frequentada pelos jovens, meninos e adultos de ambos os lados. Bem como a feira livre, o hospital municipal, as lojas de ferragens e armazéns que ficavam à esquerda da tal vala. Também eram palco do tráfego, compras, passeios de carros dos garotos mimados dos dois lados da vala divisória. Mas, intimamente, no fundo do seu coração, Marta trazia um sentimento de menos valia por morar no lado menos nobre da cidade, o lado considerado pobre, embora morasse em casa própria, o que era de grande valor para o restante da família. Mas não para ela. Junte-se a isso o numero de filhos que seus pais tinham, o emprego subalterno do pai, o fato de não terem automóvel, nem empregada domestica, entre outras mazelas que ela insistia em enxergar, como o café da manhã simples que tomavam.
Seguidas vezes, quando saíam para ir à igreja, ou clube nas domingueiras, Marta dava um jeito de sair depois de todos, como se não fizesse parte daquela família. Em outras ocasiões, assim que sabia que uma colega da sua rua ganhara um vestido novo, com a desculpa de mostrar o modelo à mãe, pegava a roupa emprestada, e antes mesmo que a dona o usasse, ela ia se exibir para as garotas lá do outro lado. Claro que escondida das próprias amigas da sua rua. Tinha inveja de coisas simples, como uma tiara de cabelo que uma colega ganhasse, se um menino carregasse os cadernos de outra, ou os vizinhos comprassem uma nova TV, tudo era motivo de implicância e maledicência de Marta. A sua alma era digna de dar pena, raiva e até nojo, como dizia, Ana, a irmã menor.
Não que ela não tivesse nenhum momento em que se alegrava. Mas era a alegria solitária dos que leem. Em romances e contos dos livros da biblioteca da escola, ela encontrava um mundo diferente, e ali sentada no sofá de casa, às vezes percebia-se o brilho dos seus olhos, ou um sorriso enlevado ao sonhar com o amor correspondido de um galante herói e uma linda mocinha. Em outras ocasiões ela discorria sobre cenários lindíssimos, praias de areia branca, mansões à beira-mar, jovens ao sol curtindo e vivendo uma vida que ela sabia existir somente através dos livros que lia. Mas a realidade era onde ela vivia e estava prestes a terminar os estudos possíveis. Isso a deixava mais ansiosa e amarga. O que seria da sua vida? Qual o seu futuro? Fim do ano chegando, eventos, aula da saudade, jantares, baile de formaturas, um movimento só, com procura por costureiras, bordadeiras, boleiras e todas as profissões que trabalham nessas ocasiões.
Marta, como aluna formanda, iria na condição de convidada. Como?Ela pensava. Com que roupa? Em qual evento? Sim, porque ela não repetiria vestido. E nessa amargura, ela perdeu dias e dias, pensando, olhando revistas de moda, invejando suas colegas, entristecendo sua mãe que tentava atrai-la com a reforma de um vestido que fora dela, de quando casara. Ou quem sabe com um tecido amarelo clarinho, que poderia dar um lindo vestido de decote princesa e saia godê? “Não”, dizia Marta, “nem pensar!” “Então vamos à costureira ver se ela tem algum tecido guardado de bom preço e escolhemos um modelo mais atual?” “ Não! As meninas já compraram tudo que havia de melhor!”
Seu pai comia em silêncio, levantava-se da cadeira e ia ao alpendre tomar a fresca, até a hora de voltar ao serviço. O comportamento de Marta o tornava pequeno; sem ânimo para argumentar, bradar, ensinar àquela filha mesquinha e egoísta, que existem coisas mais valiosas em um ser humano, do que a roupa que ele veste. Os irmãos, a quem Marta mostrava seu mau gênio aproveitavam para fazer pilhérias com a situação, outros nem ligavam e umas duas tentavam ajudar com palpites e opiniões.
Os dias se passaram, nada fora resolvido. Marta não falou mais em eventos, não lia mais, pouca conversa, enxergava os dias chatos, sem graça, a vida cinza. Enfim chegou o dia do baile de formatura. Os jovens em um frenesi, um encantamento só, esqueciam-se de que lado da cidade moravam, confraternizavam-se, abraçavam-se, contavam qual seria o seu futuro. Uns iriam para a capital do próprio estado, outros iriam para as capitais mais famosas por suas faculdades, uns tentariam Medicina, Engenharia, vários cursos foram lembrados, todos em polvorosa com o famoso futuro, a vida adulta bem ali à frente dos seus olhos brilhantes de alegria e ansiedade boa!
A mestre de cerimonias subiu ao palco e deu inicio ao evento. Para abrir as apresentações, chamou ao palco a professora de Literatura. Ela entrou sob os aplausos de todos, subiu ao palco e iniciou a sua fala:
“Não há discurso que substitua a leitura de uma poesia épica. Como vimos nos estudos clássicos, a poesia épica é um género da literatura em que se celebra uma ação grandiosa e heróica, na qual se exprime um mito coletivo. Isto é o que esta turma me traz como referência! E para melhor exemplificar, chamo ao palco para fazer a leitura de uma das cinco partes do poema Lusíadas, a aluna Marta Vasconcelos.
Fez-se um silêncio no recinto. Distante dali, uma lágrima escorreu dos olhos do pai de Marta.