A história de um homem que lê um romance nos leva a indagar: quais são os limites entre a realidade e a ficção?
Sim, porque deve haver esse limite! João tendo trabalho, esposa, filho, contas a pagar, mãe a visitar, futebol para jogar aos sábados, e todas as minudências que se entrelaçam e fazem o cotidiano.
Sendo assim seria capaz de viver totalmente a realidade da vida, ou, ao contrário, andaria com a cabeça nas nuvens dialogando altos papos com os personagens dos romances que lê?
João é ajudante de marceneiro. Seu trabalho é colar, cortar, pregar. Um trabalho concreto, do ponto de vista mental.
Ele tem o hábito de ler romances de bolso. Nem lembra quando começou mas aqueles pequenos livretos trazem para a sua vida, os bangue-bangues, os espiões, as luxúrias das mulheres sem pudores, os conflitos entre os poderosos e tantos outros universos diferentes daquele em que ele vive!
Além disso, por serem de bolso, podem ser lidos em pé, ou quando João aguarda o ônibus encostado no muro, ou no banheiro, não há empecilho para que João mergulhe em um outro mundo, várias vezes ao dia.
O mundo da ficção o rouba do mundo real.
Quando ao meio dia, com o triste prato nas mãos almoça no alpendre, o corpo mal alinhado na cadeira, mastigando pela força do hábito o seu arroz com feijão, sua mente frenética está relembrando e analisando as peripécias do marido indolente ou as fofocas das esposas entediadas do romance que está lendo.
Esse mundo é só dele.
Sua face, ah, esta é de Maria, sua mulher, de Joãozinho, seu filho, dos colegas, da mãe, das pessoas ao seu redor. Ele está ali, de corpo presente e mente ausente.
Distrai-se relembrando o gatinho sapeca que pertencia ao garoto da história e sorri, ou dá asas à imaginação tentando descobrir se a protagonista vai trair seu marido; ou se o diretor de filmes vai mesmo produzir e lançar ao sucesso a jovem atriz com quem está flertando. E nessas horas suas sobrancelhas falam por ele.
Só ele não percebe o quão transparente é!
Mesmo assim, quando a luz do dia se esvai, Maria, sua mulher, não sabe identificar se João realmente está cansado e por isso quer se deitar mais cedo ou se quer ficar a sós com sua vida submersa.
A real, a verdadeira vida, essa corre frouxa, o jardim cheio de carrapichos, mais uma ninhada de gatos nascendo, as calças do filho com a barra lá nos tornozelos, a natureza modifica os dias, o sol quente do verão dá lugar ao céu azul que prenuncia o outono, Maria já levou o filho três vezes ao parque de diversões e sempre sozinha, como se não tivesse marido e assim passa a vida.
Até que Maria cansada da mesmice, olha-se ao espelho e resolve não merecer aquela vida. Há dias ela tinha uma decisão a ser tomada.
Assim que João sai para o trabalho e Joãozinho para a escola Maria dirige-se apressadamente para os arredores da cidade.
— Sem preâmbulos ela se aproxima do parque de diversões, cujas peças estão sendo desmontadas e colocadas em um caminhão.
— José, José, já resolvi. Vou
para onde você quiser!
— E o menino?
— O pai vai cuidar. Fica tranquilo, isso é tudo que João precisa, diz Maria ficando na ponta dos pés para receber o beijo de José.