18/04/2023


A noite estava chegando e trouxe consigo um ar estranho.
Nada era como sempre foi. Não íamos sentar em nosso banco para o recreio diário.
Todos dentro de casa, jantar cedo e ir deitar. Como se houvesse algo oculto.
— Mas já?
— Sim. E quietinhos, sem uma conversa. Vou levar a lamparina. Não façam nada. Seu pai mandou — disse minha mãe saindo do quarto.
— Ah, então tem mesmo alguma coisa — cochichei com minha irmã.
— Eu notei — ela completou.
Os irmãos adultos estavam conversando e calaram-se quando eu cheguei perto.
— Calem a boca — sentenciou baixinho o irmão do meio.
— O que está acontecendo?
— Nada que é da conta de vocês — falou ríspido.
Aí eu soube, pelo tom da voz, o olhar, a rapidez da resposta, tudo isso me fez concluir: é grave.
Ouvi lá fora, ao lado do quarto, meu pai conversando baixinho por sobre a cerca com o vizinho. Olhei pela fresta. Estavam no escuro. Nem acenderam os cigarros. Fato inédito.
Todos nos recolhemos, bem antes da hora usual.
Os irmãos mais velhos, acostumados a ir sabe-se Deus aonde, nessa noite não saíram.
Mas também não deitaram. Foram para os fundos; cheiro de café, conversa sussurrada; às vezes a voz do meu pai alteava, minha mãe intervinha e a conferencia lá para o lado da cozinha continuava.
Barulho característico de um Jeep passando em frente de casa.
Meus olhos quase não piscavam para eu não ser traída e cair no sono, fixos nos vãos das paredes por onde entravam nesgas de luzes dos veículos que agora voltavam pela nossa rua. Meus ouvidos atentos. De repente, vozes abafadas na casa do vizinho.
Portão batendo. Do nosso quarto não saía nem um pio. Como a escuridão era total eu sabia apenas de mim. Acordada, ansiosa, temerosa. Do quê? Ignorava. Sabia apenas que algo grandioso ou terrível fez com que meu pai nos mandasse para a cama, assim que a noite estendeu sua enorme capa sobre o nosso mundo, chamou meus irmãos maiores e minha mãe lá para os fundos, ouviam uma falação chiada num radinho de pilha e o vizinho que era fazendeiro e cujo filho era perfumado e bem arrumado, de alguma forma se igualou a nós.
Sim, estivemos sob o mesmo medo ou incertezas. Embora moradores da mesma rua e vizinhos existia uma enorme distância entre nós.
Éramos pobres, poucas roupas, crianças pequenas, minha mãe costureira, meus irmãos assim como meu pai eram trabalhadores da construção civil. Dormi.
Acordamos e algo havia mudado. As conversas entre os vizinhos não se davam naquela forma antiga, ao se darem bom dia, varrendo as frente das suas casas; eram por sobre a cerca dos fundos.
Recebemos não sei como, um aviso sobre não haver aula naquele dia. E a notícia de que o filho do vizinho havia sido levado para prestar esclarecimentos.
Soubemos que até o padre foi levado e depois devolvido à paróquia.
Nossos professores estavam detidos na sede da Cia pertencente ao exército.
Pouca coisa mais eu me lembro, ou ouvi. Sei que após aquela noite ficamos dias e dias só dentro de casa.
Meu pai ligava a rádio para ouvir os noticiários; aguardava o dia de chegar jornais ou revistas na única banca da cidade e corria para comprar antes que acabassem; e eu soube que o rapaz bonito e bem arrumado, filho do nosso vizinho era um “intelectual“.
Foi quando entendi também que naquele caso foi benéfico para meus irmãos serem considerados apenas “uns ignorantes ajudantes de pedreiro”!

Maria Elza G. Gonçalves
Maria Elza G. Gonçalves tem 69 anos, é funcionária Pública Aposentada do Estado de MS, é formada em Administração e em Direito, com especialização em Auditoria. Estudou Contabilidade Pública. Fez curso de Jornalismo na Escola do Senado. Foi casada. Tem 4 filhos e 10 netos. Desde 2020 dedicou-se integralmente à escrita. Já lançou 3 livros físicos e um e-book. No momento faz o curso com a Casa do Contista. Mora em Campo Grande-MS.
VOCÊ PODE GOSTAR

Grito de alerta
17/04/2023
por: Soraya Jordão
Amor andava calado, cabisbaixo, abatido. Por mais que tentasse interagir, conversar, criar vínculos, nada acontecia. Sem saber como ou por que, tornou-se um sujeitoLeia mais…

Agressões e mortes nas escolas: fratura na educação familiar
16/04/2023
por: Antônio Pimentel
As recentes facadas e machadadas contra educadores e educandos em escolas do Brasil ainda ecoam entre nós. O eco vai perder força e sumir. É sempre assim. Tragédias agitam aLeia mais…

Não acredite em tudo que a internet disser a você
16/04/2023
por: Claudia G. R. Valle
A discussão sobre os rumos da Inteligência Artificial e sua influência na organização social está bombando, mas acho que ainda cabe focar no básico porque, para o bem e para oLeia mais…

Ler é um aprendizado eterno. Escrever, também.
15/04/2023
por: Lau Siqueira
Tenho poucas certezas na vida. Todavia estou convicto das minhas dúvidas. Elas me ajudam a pensar. Fui alfabetizado nos anos sessenta, mas sessenta e poucos anos após ainda estouLeia mais…

Violeta
15/04/2023
por: César Manzolillo
O louco é estrangeiro em sua própria pátria.Livia Garcia-Roza Eu, Violeta Pinheiro do Nascimento Vasconcelos, estava lá quando ela chegou. Eu fui parte desse nascimento, ela saiuLeia mais…

Morte anunciada
15/04/2023
por: Ana Helena Reis
Sabe aquele segundo em que dá um flash e temos certeza de que, na gíria de hoje, vai dar ruim e não dá mais para voltar atrás? Pois é, a crônica de hoje vai contar um caso assimLeia mais…

Maldades Obscenas!
13/04/2023
O que não pode ser visto, não incomoda, essa máxima nos protege dos males da natureza humana, que insistem surgir durante décadas e afetar as mentes mais frágeis entre nós. MesmoLeia mais…

Os famintos
13/04/2023
por: Mário Sérgio Baggio
No começo os famintos falaram, falaram e falaram, explicaram, argumentaram, justificaram o injustificável, gritaram palavras de ordem, fizeram pregações religiosas, protestaramLeia mais…

A garça, a lente e o um novo ciclo cotidiano
13/04/2023
por: Bia Mies
A garça branca caminhava, com toda a sua altivez, pela largura central do lago. Suas pernas esbeltas e confiantes pararam no meio do caminho quando adentrei o perímetro. MeLeia mais…

Última revelação (os derradeiros momentos de Augusto dos Anjos)
11/04/2023
por: Chico Viana
A febre não passava. Vinha com calafrios, tosse, dores nas costas. Bem que não deveria ter comparecido ao enterro de João Lourenço Ferreira de Lacerda. Chovia muito, e ele jáLeia mais…

Duas belas e jovens senhoras no show do Coldplay
10/04/2023
por: Telma Maria Ferreira Barros
Prontos para rir? Assim que eu soube que a banda faria uma curta apresentação aqui no Rio, comecei uma campanha pelos grupos de whatsapp para encontrar alguma amiga que topasse irLeia mais…

Vamos falar de amor, somente de amor
10/04/2023
por: Soraya Jordão
O dia havia começado a acordar quando Marcela, minha afilhada, na curiosidade dos seus nove anos, perguntou: — Como a gente sabe que está apaixonada? No susto, pensei emLeia mais…

Há algum tempo, num certo lugar…
09/04/2023
por: Walcemir Azevedo de Medeiros
Quase todo mundo se conhecia. Alguns eram conhecidos de todos. O padre era o Frei Acúrcio. Militão era dono do armazém. Perto de minha casa, havia a mercearia do Sato. Acho queLeia mais…

Uma cracolândia ideológica se espalha.
08/04/2023
por: Lau Siqueira
O neonazismo no Brasil não é novidade há muito tempo. Muito recentemente havia um certo exotismo em relação aos “Carecas do ABC” – grupos neonazistas estabelecidos nasLeia mais…

A DAMA DO ESCRITÓRIO
08/04/2023
por: César Manzolillo
Madalena abriu a porta da sala lentamente e se atirou no sofá. Talvez Nestor já estivesse dormindo, apesar de ainda não ser tarde. Estava cansada. Não exatamente do trabalho, eraLeia mais…

Porcina Furtado em: ‘Poesia de 1 a 99’
08/04/2023
por: Porcina Furtado
*Porcina Furtado é natural de Sousa PB, onde reside. Poeta, (Fundadora da Academia Sousense de Poesia) Produtora cultural, Professora, graduada em Letras pela UFPB. Tem diversasLeia mais…

Missão Pascal
08/04/2023
por: Ana Helena Reis
Missão Pascal – um conto que faz pensar sobre a nossa missão nessa Páscoa.

Tentar construir uma verdade!
06/04/2023
Um homem rico chamado Calvicius Sabinus, tinha um cérebro com uma memória minúscula, que o deixava com saia justa por diversas ocasiões sociais. Por isso resolveu gastar umaLeia mais…

Considerações sobre o indefensável
06/04/2023
por: Mário Sérgio Baggio
Alguns acontecimentos podem ser explicados pela ciência física, com suas leis, seus paradigmas e suas proporcionalidades e, ainda e mesmo assim, não ultrapassam jamais o terrenoLeia mais…

A primeira vez a gente nunca esquece
05/04/2023
por: Alexandre Leidens
Furtei um livro essa noite. Foi o primeiro furto da minha vida, ao menos envolvendo algo de valor, pois ninguém liga para o sumiço de uma caneta, um apontador ou um chinelo. VinhaLeia mais…

Antenas trocadas
04/04/2023
por: Chico Viana
Não sei por que o pessoal que escreve teme a concorrência com a Inteligência Artificial. O que ela faz não é novo. Existem há muito tempo no mercado livros escritos por robôs –Leia mais…

Aula magna do Criador
03/04/2023
por: Soraya Jordão
Há tempos me convenci de que a natureza sempre nos ensina o melhor caminho a seguir na construção de uma vida equilibrada e harmoniosa. Podemos até ignorar os sinais, masLeia mais…

Ignorância minha
02/04/2023
por: Claudia G. R. Valle
Consultar a internet é tudo de bom, mas uma das coisas que ela me ensinou é que minha ignorância é bem maior do que parece à primeira vista. Tempos atrás, lendo uma notícia sobreLeia mais…

“Quem ama, o feio bonito lhe parece”
02/04/2023
por: Antônio Pimentel
Há meses, um amigo publicou no facebook uma crônica sobre um homem feio: “Ser feio é foda”. Eduardo, vulgo Feioso, é um feio que assusta. Até sua mulher, quando ele chega deLeia mais…
Você precisa fazer log in para comentar.
RECENTES
- Senhor Divago
- Aquela noite
- Sucesso e felicidade
- Grito de alerta
- Agressões e mortes nas escolas: fratura na educação familiar
- Não acredite em tudo que a internet disser a você
- Ler é um aprendizado eterno. Escrever, também.
- Violeta
- Morte anunciada
- Maldades Obscenas!
CRÔNICAS CARIOCAS © 2006-2020. Textos assinados são de responsabilidades de seus autores. Política, Termos & Condições