Aquela noite

18/04/2023

Maria Elza G. Gonçalves

por:  Maria Elza G. Gonçalves

A noite estava chegando e trouxe consigo um ar estranho.

Nada era como sempre foi. Não íamos sentar em nosso banco para o recreio diário.

Todos dentro de casa, jantar cedo e ir deitar. Como se houvesse algo oculto.

— Mas já?

— Sim. E quietinhos, sem uma conversa. Vou levar a lamparina. Não façam nada. Seu pai mandou — disse minha mãe saindo do quarto.

— Ah, então tem mesmo alguma coisa — cochichei com minha irmã.

— Eu notei — ela completou.

Os irmãos adultos estavam conversando e calaram-se quando eu cheguei perto.

— Calem a boca — sentenciou baixinho o irmão do meio.

— O que está acontecendo?

— Nada que é da conta de vocês — falou ríspido.

Aí eu soube, pelo tom da voz, o olhar, a rapidez da resposta, tudo isso me fez concluir: é grave.

Ouvi lá fora, ao lado do quarto, meu pai conversando baixinho por sobre a cerca com o vizinho. Olhei pela fresta. Estavam no escuro. Nem acenderam os cigarros. Fato inédito.

Todos nos recolhemos, bem antes da hora usual.

Os irmãos mais velhos, acostumados a ir sabe-se Deus aonde, nessa noite não saíram.

Mas também não deitaram. Foram para os fundos; cheiro de café, conversa sussurrada; às vezes a voz do meu pai alteava, minha mãe intervinha e a conferencia lá para o lado da cozinha continuava.

Barulho característico de um Jeep passando em frente de casa.

Meus olhos quase não piscavam para eu não ser traída e cair no sono, fixos nos vãos  das paredes por onde entravam nesgas de luzes dos veículos que agora voltavam pela nossa rua. Meus ouvidos atentos. De repente, vozes abafadas na casa do vizinho.

Portão batendo. Do nosso quarto não saía nem um pio. Como a escuridão era total eu sabia apenas de mim. Acordada, ansiosa, temerosa. Do quê? Ignorava. Sabia apenas que algo grandioso ou terrível  fez com que meu pai nos mandasse para a cama, assim que a noite estendeu sua enorme capa sobre o nosso mundo, chamou meus irmãos maiores e minha mãe lá para os fundos, ouviam uma falação chiada num radinho de pilha e o vizinho que era fazendeiro e cujo filho era perfumado e bem arrumado, de alguma forma se igualou a nós.

Sim, estivemos sob o mesmo medo ou incertezas. Embora moradores da mesma rua e vizinhos existia uma enorme distância entre nós.

Éramos pobres, poucas roupas, crianças pequenas, minha mãe costureira, meus irmãos assim como meu pai eram trabalhadores da construção civil. Dormi.

Acordamos e algo havia mudado. As conversas entre os vizinhos não se davam naquela forma antiga, ao se darem bom dia, varrendo as frente das suas casas; eram por sobre a cerca dos fundos.

Recebemos não sei como, um aviso sobre não haver aula naquele dia. E a notícia de que o filho do vizinho havia sido levado para prestar esclarecimentos.

Soubemos que até o padre foi levado e depois devolvido à paróquia.

Nossos professores estavam detidos na sede da Cia pertencente ao exército.

Pouca coisa mais eu me lembro, ou ouvi. Sei que após aquela noite ficamos dias e dias só dentro de casa.

Meu pai ligava a rádio para ouvir os noticiários; aguardava o dia de chegar jornais ou revistas na única banca da cidade e corria para comprar antes que acabassem; e eu soube que o rapaz bonito e bem arrumado, filho do nosso vizinho era um “intelectual“.

Foi quando entendi também que naquele caso foi benéfico para meus irmãos serem considerados apenas “uns ignorantes ajudantes de pedreiro”!

Maria Elza G. Gonçalves

Maria Elza G. Gonçalves

Maria Elza G. Gonçalves tem 69 anos, é funcionária Pública Aposentada do Estado de MS, é formada em Administração e em Direito, com especialização em Auditoria. Estudou Contabilidade Pública. Fez curso de Jornalismo na Escola do Senado. Foi casada. Tem 4 filhos e 10 netos. Desde 2020 dedicou-se integralmente à escrita. Já lançou 3 livros físicos e um e-book. No momento faz o curso com a Casa do Contista. Mora em Campo Grande-MS.

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Publicado por blogdadivinablog

Me autodenominei Divina, Perfeita e Maravilhosa. Não é por vaidade e sim porque acredito que foi assim que Deus nos criou: à sua imagem e semelhança. Mesmo que humanamente isso pareça impossível, ao expressar minha crença me sinto bem. Busco o melhor sempre. Tenho fases, sou de Libra e isso ajuda a explicar minhas qualidades e meus defeitos. Amo a vida, minha família, meus amigos. Estudei bastante, sempre gostei de ler, li romances, documentários, biografias...mas minha maior bagagem é de vida, pois sou intensa. Amo muito, preocupo-me muito, erro muito, e procuro muito acertar! Vou dividir com vcs um pouco da minha experiência de vida, neste espaço que considero meu "travesseiro virtual" e o convido a compartilhá-lo comigo. Venha?! Criei este blog em agosto de 2010 na plataforma blogspot. Posteriormente o trouxe para o WordPress . Agora em 2021 estou agregando-o ao meu site asdivinas.com.br

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