É a vida
09/05/2023


D. Neuza conta a sua história e dá risada. A Beth acompanha com os olhos e de vez em quando esboça um sorriso. É evidente em sua face a admiração que tem pela irmã. As outras mulheres que estão nessa roda são de idades iguais ou próximas a Neuza, apenas duas são bem mais novas.
De vez em quando ouvem-se risos, depois palpites, silêncio e novas risadas. É lindo ver a cumplicidade, a confiança e a interação entre todas.
E o que conta ela? Ahhh, o tema é a difícil e complexa vida amorosa do ser humano. E mais ainda quando os pretensos namorados se encontram na terceira idade, onde os eflúvios da paixão se misturam à análise fria e lúcida da situação financeira, familiar e de saúde de cada um dos envolvidos.
Como Neuza foi separada, depois viúva, ao aposentar-se teve o tempo e a vida ao seu dispor.
Voltou à cidadezinha onde cresceu e havia saído após casar-se. Foi como quem visita um tempo, tão distante, que quase não se reconhece nele. Mas a sua origem estava ali, a pegou pelas mãos e Neuza encontrou uma nobre ocupação. Ajudar e revezar o cuidado com a única irmã que nunca deixou de morar ali na casa da família, a Beth, no atendimento da mãe idosa.
Resolveu ficar.
A novidade espalhou-se. Vieram as amigas da mãe, as antigas colegas, mocinhas na mesma época dela, e por viuvez ou separação voltavam para o lugar de onde saíram. Aprareceram também os ex-paqueras ou namorados, os amigos dos irmãos, enfim, em uma cidade pequena um forasteiro é uma novidade, mas uma antiga moradora é um evento! Principalmente para os que viveram a infância e juventude na mesma época. A casa voltou a ser animada, sua mãe sentiu voltar o vigor em seu maltratado corpo, Beth teve um “refresco” no cuidado com a mãe e assim estavam os dias.
Entre os “rapazes”, todos eram amigos entre si e trocavam suas impressões sobre a Neuza, que havia sido até rainha do baile da primavera quando jovem.
E foi um tal de passar para dar um oi para a sua mãe, a D. Biquinha, ou tomar um café para relembrar os velhos tempos, uma desculpa ou outra e lá estavam entrando ou saindo os antigos jovens da cidade, hoje cada um com sua cota de lamúria, aposentado ou fazendo bico para completar a renda, uns morando com filhos, outros sozinhos. O tempo havia passado para todos. Só não passava a camaradagem e forma de viver das cidades pequenas.
Neuza era simpática, falante e se dava bem com todos.
Entre as visitas, teve um que tomou uma atitude estranha.
Fernando, um dos antigos rapazes da época de Neuza trouxe uma caixinha de chá e foi falando:
— Neuza, vou deixar aqui e passo para dar bom dia e tomar uma xícara de chá com vocês, tá bom?
Ela estranhou, mas disse tudo bem.
Durante o dia entre seus afazeres foi lembrando que Fernando era um dos rapazes mais disputados, e que ela nunca deu atenção a ele.
Lembrou-se também que nem ele demonstrava interesse nela.
Beth, sua irmã, achou que matou a charada.
— O que Fernando está fazendo é flertar com você, Neuza!
— Onde? Nunca me deu bola quando jovem! Bem capaz! E eu nem dei entrada nenhuma, falou com cara de zangada.
— Quem nunca me olhou por mais de cinco segundos, agora quer tomar chá comigo todo dia? Ahhh, mas não mesmo! Você está “viajando.”
Foi para o quarto, e pelo sim, pelo não examinou seu rosto ao espelho e ficou pensativa próxima à janela, olhando sem ver.
Passava em sua mente o período pós viuvez, onde sentiu-se invisível por uns tempos, até retomar o cuidado com a pele, com o corpo e recuperar o sentimento bom de se sentir bonita.
“Enfim, uma paquera é uma paquera, e aqui onde não tem nada de lazer, até seria bom ter uma companhia. Pelo menos ele é amigo dos meus irmãos e podemos ir ao cinema, shoppings nas cidades vizinhas, ter um pouco de atrativo nos meses que pretendo ficar aqui. Não vou me jogar de cabeça, apenas dar uma abertura e ver no que dá.”
E assim se passaram trinta dias. Pelo aplicativo de conversa, Fernando era galanteador e se mostrava muito interessado, mas não passava disso.
Até que em um dia, Neuza falou de forma direta com ele.
— Já não sou mais a menina de antigamente. Eu me casei, você sabe, separei-me depois dos filhos adultos, depois fiquei viúva. Já vivi algumas curtas ilusões, e no momento estou com meu coração livre.
E você, Fernando? Qual a sua real situação? Aqui é uma cidade pequena, você sabe que eu poderia perguntar para uma ou outra pessoa e retiraria a sua ficha em dois tempos. Mas não quero isso.
Gostaria que me falasse honestamente sobre sua vida passada, para que eu conheça o homem que você se tornou.
Prefiro assim e pode ficar à vontade em se abrir comigo, não estou aqui no papel de julgadora do seu passado.
Ele reviveu sua vida amorosa, falou dos filhos, todos adultos, gostava da vida noturna, sair com os amigos e viver a surpresa que poderia existir ou não nessa fase de vida; sendo assim, teve uma boa lista de “amigas”, mas todas de pouco tempo.
Namorar mesmo, ter compromisso, foram só a esposa e duas namoradas.
Já era aposentado, tinha um salário que bancava seu estilo de vida, e conservava os velhos amigos de infância, com os quais ia pescar, sair para dançar ou fazer um churrasco e ficar jogando conversa fora.
— Neuza, você seria a mulher ideal, estável financeiramente, madura mas ainda bonita, se dá bem com nossos amigos…
Sinceramente, eu penso que faríamos um bom par.
Podíamos namorar, aproveitar o tempo, as alegrias e a felicidade que a vida ainda pode nos reservar.
Fernando parecia muito sincero. Neuza aceitou, pois comungava das mesmas ideias dele.
Só a camaradagem e a amizade já eram certeza de dias felizes.
Ah, os humanos! Uma minúscula promessa de amor incendeia a alma adormecida… Mesmo que o coração se vangloria de ser estéril, um vento anunciando a chuva faz brotar a flor; a solidão já se fez solitude, os amigos preenchem a vida, a amizade é preciosa… mas nada substitui o brilho que o amor tem.
Esse que rejuvenesce o sorriso, a pele, o cabelo e principalmente o olhar de Neuza.
Ela resplandeceu em todos os aspectos depois que aceitou namorar com Fernando, e este, por sua vez, mostrou-se cortês, educado e apaixonado. Por exatos três meses ele se embriagou no olhar onde se via refletido. Até que começou a faltar aos encontros, não atender aos telefonemas de Neuza e passou a ter outros compromissos.
— Durou muito, os amigos disseram quando ele sumiu.
A princípio, Neuza não acreditou que Fernando havia mudado com ela dessa forma. Depois da surpresa inicial ela resolveu pôr um fim ao namoro.
Mandou um recado por seu irmão para que Fernando atendesse ao telefone. Fernando ouviu calado tudo o que Neuza lhe disse, não se desculpou, não disse sim e nem não, apenas entendeu que o namoro acabou e desapareceu da cidade.
Em pouco tempo, Neuza se recuperou e seguiu vivendo a sua linda história de mulher independente e bem resolvida. Descobriu que o brilho que traz no olhar é seu, e não é reflexo de nenhum espelho. Suas amigas, a quem ela e sua irmã Beth vieram visitar após a morte de sua mãe, e a quem ela estava contando esta história, todas se sentiram representadas por ela.
— Fez bem! Imagine numa época dessas, ser passada para trás, como uma mocinha ingênua. Nem pensar!
Fernando? Voltou com uma antiga namorada.
Como Narciso segue em busca da sua perfeição imaginária e de quem possa lhe suprir essa ilusão momentânea.
É a vida, diria o filósofo, é a vida.

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SOBRE O AUTOR

Maria Elza G. Gonçalves
Maria Elza G. Gonçalves tem 69 anos, é funcionária Pública Aposentada do Estado de MS, é formada em Administração e em Direito, com especialização em Auditoria. Estudou Contabilidade Pública. Fez curso de Jornalismo na Escola do Senado. Foi casada. Tem 4 filhos e 10 netos. Desde 2020 dedicou-se integralmente à escrita. Já lançou 3 livros físicos e um e-book. No momento faz o curso com a Casa do Contista. Mora em Campo Grande-MS.
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