O trem vinha diminuindo a marcha, Adélia acordou as crianças, um menino de cinco anos e a garotinha de dois anos. Paulo, seu marido, pegou as malas, sacolas, e a bicicleta do vagão de carga. Quando o trem parou as pessoas desceram, uns abraçavam eufóricos os parentes, outros buscavam o carro de praça, outros colocavam a mochila ou mala nas costas e saiam andando.
Final de viagem, cansaço, alegria, pressa, surpresas.
Ela desceu do vagão e ficou parada na plataforma, as mãos dos filhos em cada mão sua. Paulo vinha andando com as bagagens, Adelia aguardava pronta para pegarem o carro de praça e irem para a nova casa.
Afinal chegaram à cidade onde iriam morar! Ele havia sido contratado por uma grande empresa e fora buscá-la para começarem vida nova.
Uma alegria só! Grandes promessas, bom salário, plano de saúde, auxílio moradia, tudo que uma jovem família podia sonhar!
Com Paulo tudo era assim. Ele era o mais prestigiado, ele ganharia bem, ele daria uma vida de conforto à esposa e filhos e com isso já estavam casados havia cinco anos e até então ela não sabia o que era ter uma casa. Alternou-se morando ora na casa dos pais, ora na casa dos sogros.
Mas desta vez Paulo garantiu que eram favas contadas: o emprego sonhado, a vida que ela merecia, tudo estava certo.
Tentou alegrar-se, mudar o semblante.
Adélia tinha os olhos cor de mel, era mignon, cabelos longos, muito graciosa, na faixa dos vinte e cinco anos. Paulo quase quarentão, vivido, boa lábia, o tipo que não convencia como marido exemplar e pai de família, mais parecia um cantor de pagode esforçando-se para assumir o perfil de homem de família.
Ele apaixonou-se por Adélia assim que a viu e ela correspondeu mais pela paixão dele e pela vontade de sair logo do jugo dos seus pais.
Adelia não podia negar, o tempo todo Paulo procurou ser o homem ideal e quando os filhos nasceram mostrou-se um bom pai.
Enquanto o aguardava ela olhou ao redor e o que viu não era nada animador.
Atras dela a estação, o trem com seus vagões onde algumas poucas pessoas permaneciam embarcadas, pois seguiriam viagem até outro pais. Ao longe, à esquerda da via férrea viam-se montanhas negras, ricas em minérios, fontes de renda e de poluição.
A sua frente um grande espaço vazio, mais parecia uma paisagem de deserto, a terra seca e branca, uma vegetação rareada e esquálida torrada pelo sol e depois o asfalto produzindo uma espécie de miragem ao calor das nove horas da manhã.
O movimento de carros, carroças, ciclistas, pedestres debaixo do sol amarelado faziam subir um mormaço anunciando que ao meio-dia o calor deveria assemelhar-se ao de uma fornalha.
— Vamos, vamos— disse Paulo indo em direção ao terreno vazio. Só atravessarmos por aqui, depois o asfalto e já chegamos ao quarto que tá esperando por nós.
— Como assim? —indagou Adélia? Um quarto?
— Calma— respondeu Paulo. Não falei pra você, mas assim de cara nós vamos pra uma pensão que fica aqui do outro lado da estação ,e enquanto vocês descansam vou buscar a chave da nossa casa.
—Mas Paulo, não foi isso que você falou! —Disse a jovem com a voz já embargada. Paulo abraçou a mulher, beijou a bebê que estava em seu colo e falou baixinho: confia Adelia, confia!
Adélia suspirou resignada, pois conhecia a sensação que Paulo provocava nela levando-a do inferno ao céu com um simples abraço. Oh ódio, ela pensou! De novo o Paulo me enrolou!
Apesar do que sentiu ela decidiu não ser hora de discussão, na rua, com malas e na frente das crianças.
Pegou a bicicleta colocou a menina em cima e foi atravessando e seguindo o caminho indicado por Paulo.
Chegaram, Adelia entrou, olhou para o quarto, depois para Paulo e este, rapidamente, na ambiguidade da sua natureza, viu não ser hora de usar de seu charme para desfazer a surpresa da esposa.
— Adélia vou sair para tomar as providências. Tome conta das crianças, se quiserem tomem o café da manhã ou descansem até o almoço. Não abram a porta para ninguém!
— Que horas você volta? —perguntou ela.
—Vou ao acampamento pegar os colchões, a chave da casa com o proprietário, ver se a energia e a água estão ligadas, ajeitar tudo e venho buscar vocês. — Paulo respondeu
— Hoje mesmo vamos dormir em nossa casa! Beijou-a com paixão, fez um afago nas crianças e saiu apressado.
Adélia resolveu não julgar Paulo, nem desanimar. Tomaram banho e se deitaram para descansar, pois a viagem fora longa.
Quase escurecendo Paulo chegou no jipe da empresa carregado com mantimentos, panelas, vasilhas e colchões de solteiros. Disse já ter ido a casa, e a mesma já fora limpa e na mesma animação brincou com os filhos:
— Quem vai comigo amanha comprar os moveis? Quem? Quem?
— Vamos crianças, peguem suas mochilas! As crianças responderam
— A gente tá pronto, pai!
— Não te disse Adelia que hoje a gente ia dormir em nossa casa? —Paulo anunciou sorrindo para Adélia. Ah, tem mais:
— A empresa abriu uma linha de crédito!— amanhã compraremos tudo que falta.
E saiu levando malas, bicicleta sacolas e foi ajeitando na condução.
Tudo arrumado despediu-se da dona da pensão e partiram para a vida nova.
Adelia num turbilhão de pensamentos e sentimentos.
Final de tarde, os pontos de ônibus lotados, carros indo e vindo, Adélia ansiosa e as crianças curiosas. Paulo ia explicando por onde estavam passando, aqui a praça, lá a prefeitura, ali igreja matriz; as ruas iam ficando sem movimento e eles ainda seguindo, entrando por ruas secundárias, deixando o centro da cidade. O morro ou montanha que ficava à esquerda da estação e parecera distante, agora estava tão perto!
Paulo adentrou em uma rua onde novamente se via movimento de ciclistas, pessoas, pequenos comércios, bares, açougues e Adelia percebeu que estavam na rua principal de algum bairro, bem ao pé da montanha. Paulo seguiu mais um pouco e chegou em uma esquina da rua principal, onde parou e disse: A casa!
Uma casa de esquina com a cor de um rosa desbotado e em formato de L. com várias portas, onde outrora deveria ter sido um armazém, na rua principal de um bairro movimentado.
Paulo parou e desceu do carro. Abriu o portão de madeira em que faltavam algumas tábuas e colocou o carro para dentro do quintal.
Destrancou a porta de trás, desceu as crianças, depois ajudou Adélia a desembarcar.
Abriu a casa e entusiasmado entrou no interior do antigo armazém, um grande espaço único. Adélia olhou, não viu sala, quarto, cozinha. Paulo falava de divisão para os quartos, do espaço de sala e cozinha, o quanto seria bom ela e as crianças ficarem próximas e seguras.
Adelia com vontade de gritar, puxar os cabelos, estrebuchar de ódio e ele na descrição da casa gabando o quintal, onde havia um caramanchão com uma lavanderia de um lado e de outro lado um fogão a lenha e churrasqueira, já pensou que beleza?disse.
Adélia não abriu a boca, apenas olhava e ouvia.
Sua raiva não era pra ser ali, não na frente dos filhos!!
Paulo pegou os colchões colocou no cômodo vazio, depois as malas e sacolas e foi ajeitando perto dos colchões.
No mesmo tom e disposição como mostrou a casa ele disse:
— Adélia ajeita as camas enquanto vou rapidinho comprar presunto e pão para o cafe da manhã e carvão, refrigerante, e uma carne para assar. Foi ao quintal confirmar o esquema já deixado durante a tarde e saiu apressado pelo buraco do portão.
— Não demore Paulo, pelo amor de Deus! — gritou Adélia.
— É aqui em frente amor, do outro lado da rua, eu não demoro —respondeu ele.
Ela trancou a porta e disse— Paulinho me alcança a sacola e você Claudia senta aqui, mamãe vai arrumar a cama, tá?
Pegou um desinfetante da caixa de compras e foi passando pelo chão, “naquela merda ali decerto tinha ate barata” pensava com a raiva remoendo por dentro. Foi ajeitando os lençóis, quando ouviu chamarem do portão. Ela trancara a porta, ainda bem!
Um homem falava— Ei, quem tá aí? — Ei, tem alguém aí?
O homem foi entrando pelo vão do portão e chamou bem próximo a porta, as crianças se assustaram e começaram a gritar pelo pai e chorar. A mãe tentava acalmá-los quando ouviu a voz de Paulo:
— Quem é você? O que quer aqui? – Paulo gritava em voz alta ao estranho.
— Eu é que quero saber! O que você está fazendo? Quem são as crianças que estão chorando trancadas aí dentro?
– Olha cara, nós nunca mexemos com crianças, hein? A gente bebe, fuma, joga, “mais nóis não é bandido não!” – Vociferava o estranho cheio de razão!
—Fora, gritou Paulo! Aqui é casa de família, sou o novo morador, vai andando, vai andando!
—Amanhã mesmo mando arrumar o portão e não quero ver mais ninguém entrando no quintal!
O estranho por sua vez preferiu amaciar o tom e disse
—Ta certo, óia por uns trocados eu cuidava pro dono e agora até fazia a “guarda” se o “sinhô” quisesse.
—Não precisa. Sou do exército e tenho soldados para fazer a guarda—respondeu Paulo.
Rapidamente o intruso se foi e Paulo entrou para acalmar a família.
Esse episódio poupou Paulo de tudo que Adelia pretendia falar prá ele, depois das crianças dormirem e, acabou com o churrasco.
Em silêncio comeram pão com refrigerante e foram se deitar.
Quando as crianças dormiram Adélia abraçou Paulo e deitou a cabeça em seu ombro.
No quintal próximo a quina da casa um pe de “dama da noite” exalava seu perfume agridoce e pungente. Uma mistura de amor e compaixão tomou o lugar da decepção no coração dela.
Paulo ficou abraçado com Adelia e mais uma vez pediu um voto de confiança. Ela devia lembrar-se: ele não estava só.
Havia a empresa, o emprego era bom, tudo era uma questão de tempo e achariam a casa certa.
Eles se beijaram e o amor amenizou o ocorrido.
Tudo ficaria bem! Ambos sorriram um para o outro e enfim descansaram dormindo abraçados.
A noite indo embora, as nuvens alaranjadas anunciavam o sol nascendo para esquentar mais um dia. Paulo levantou-se e avisou sua esposa que precisava levar o “rancho “para o acampamento. Passaria na padaria e açougue para carregar as mercadorias, pegaria um colega no caminho e as sete horas as provisões tinham que estar a mesa, para que os empregados comessem e pegassem no batente
— Vamos às lojas assim que eu desocupar, ta bom? E vocês crianças fiquem em casa e obedeçam a mamãe recomendou.
Beijou Adélia com ardor e saiu.
Chegando ao acampamento havia uma incumbência diferente para Paulo. Teria que ir à estação pegar mais um colega e família que vinha trabalhar na empresa. A firma resolveu apressar o serviço, pois o tempo estava seco e as fundações teriam que ser feitas nessa época. Sendo assim ainda recrutava trabalhadores retardatários, que iam chegando dia após dia.
Paulo rapidamente voltou à cidade, pois era quase hora da chegada do trem. Assim que o colega desembarcou com mulher e crianças, eis a surpresa!
—É você mesmo? — Cara, que bacana te encontrar aqui! Paulo imediatamente o reconheceu: foram colegas da juventude. Abraços, reconhecimento, apresentações, e enfim a pergunta:
— Já estão com a chave da casa?
A história era a mesma: ficariam em uma pensão em frente à estação até que fossem ver a casa e tal. Em um misto de pressa e simpatia Paulo o convidou para que fossem até a sua casa, havia lugar para todos e sendo colegas da mesma empresa, seria bom para as crianças de ambos e para as esposas que se conhecessem logo.
O armazém circundava a esquina, então havia mesmo um outro bom espaço a ser ocupado e Paulo pensava com isso agradar Adelia, pois assim ela não ficaria sozinha o dia todo com as crianças.
Assim fizeram. Foi quando o amigo disse:
—Paulo, eu tenho uma casa em vista já reservada pra mim.
Que tal a olharmos? Quem sabe serve para nós todos!
Adélia gostou, pois sem dizer a Paulo como se sentia ali naquele lugar, o amigo decidira por ela! Pelo menos abriu essa possibilidade.
Todos concordaram, se amontoaram no carro e foram a imobiliária pegar a chave e ver o imóvel. Era um sobrado.
Um casarão antigo; no primeiro piso uma sala que um dia deveria ter sido maravilhosa, com uma escadaria que fora imponente em outras épocas.
No andar de cima quatro enormes quartos com banheiros. Uma construção sólida, mas antiquada.
Verificaram as instalações elétricas e hidráulicas, trancas e cadeados de portas e janelas, se a casa era segura e por fim decidiram que aquela era a casa ideal para as duas famílias.
Que beleza!
Tudo resolvido, foram almoçar e depois às lojas comprar os mobiliários. Aquela noite fizeram o churrasco, brindaram a nova vida, esqueceram todos os problemas e dormiram felizes no antigo armazém.
No dia seguinte fizeram a mudança para o casarão, escolheram os quartos, e como a loja entregaria os móveis a tarde, os homens foram ao acampamento.
Adélia e sua nova amiga ficaram para limpar tudo e esperar a entrega da loja. As crianças estavam alegremente brincando e descobrindo a nova casa.
As esposas tagarelavam esfregando o chão da sala para que aparecesse o piso maravilhoso que se desenhava embaixo da sujeira, e não perceberam que estavam sendo observadas, quando ouviram bater palmas.
As duas mulheres se entreolharam admiradas pensando que os entregadores dos móveis vieram antes do esperado.
Adélia foi até a janela de onde já estavam sendo olhadas por dois homens e eles não eram os entregadores de móveis.
Ela olhou e disse:
— Pois não?
Um deles exclamou: — Que bom que vão reabrir!
O outro perguntou: — Que horas vocês vão começar a atender?
Mais uma provação para Adelia? ——Ahh não! Ela pensou e com
a força de toda a raiva acumulada nos dias anteriores, ela pegou o balde de agua suja e jogou pela janela no homem que ali estava, e saiu porta a fora brandindo a vassoura e gritando a plenos pulmões
—Fora, fora! Aqui é casa de família, seus desocupados! Fora da minha casa!
Os dois homens correndo, Adelia chacoalhando a vassoura, a amiga sem entender direito o que ocorrera, viu ela voltar e ajoelhar-se no piso molhado, rindo às gargalhadas, ria, ria e chorava misturando as lagrimas à sua risada.
Adelia encontrara o seu papel no mundo!